Quando
minha filha pediu, para o seu aniversário de 7 anos, um bolo com a “Galinha
pintadinha”, agarrei a ocasião como se fosse a última tábua de salvação nesse
oceano conturbado das identidades femininas em construção. Eu sabia o que estava
por vir: as montruosas, horríveis e anoréxicas “Monster High”. Elas não
tardaram a aparecer no horizonte, vieram na bolsa do Papai Noel que, para
contrabalançar o fenômeno gótico-pop-brega, trouxe também pijamas e pantuflas
(sim, pantuflas!) para Camille, aquela boneca mimosa e comportada com carinha
de boa aluna de escola particular. Isso ela não tinha pedido, claro, mas Papai
Noel recebeu uma outra cartinha paralela pedindo pelamordedeus que ele fizesse
algo contra aquela onda maléfica que estava inundando o ambiente, tal um
tsunami cor roxo-caixão. O pijama e as pantuflas eram rosa-bebê.
O bolo da Galinha pintadinha
Muitas
fases, imagens, identificações se passam nessa construção complexa da
identidade feminina. Ela já foi Hello Kitty, fofinha, rosinha, com lacinho na
cabeça, antes de se tornar uma princesa, esperando o príncipe encantado numa
carruagem colorida. Enfeitada de princesa, toda rosa, mas não rosinha, ela
estava lá sustentando a imagem de uma dama que já não mais usava lacinhos para
si mesma mas para um outro. O bolo foi uma carruagem, porque a dança das marcas me
incomoda e Hello Kitty já havia conseguido terminar com minha paciência para todo
e qualquer merchandising. Não havia nenhuma das princesas clones no bolo, nem a
amarela, nem a azul, nem a rosa, nem a verde. Enfim, elas apareceram
furtivamente nas velas... Mas foram logo queimadas em praça pública e empaladas
num palito...
O bolo da Hello Kitty
A carruagem da princesa
Depois da
princesa, veio o mundo encantado da bailarina, também rosa, mas algo assim mais
determinado e equilibrado na ponta dos pés da feminidade, com saias de filó,
collants, e o corpo desenhado debaixo do rosa-bebê. O bolo da bailarina tinha
saias. Saias rodadas, daquelas que voam e que mostram algo mais do que fofura.
Vestida de bailarina, cabelos presos, paetês, saia de filó transparente e
collant rosa, ela estava pronta para o espetáculo do mostra-esconde típico que
vai se inscrever como leitmotiv feminino.
O bolo da bailarina
Até aí, as
bonecas seguiam o ritmo da música infanto-feminina que tratava do corpo de uma
menina, não de uma mulher. Camille, a tal boneca com carinha de menina
comportada, que não diz bobagens e não pula em poça d’água, apaziguava
incêndios que as Barbies atiçavam. Sim, elas vieram, essas bonecas com cara de
americanas indo para o Spring Break em Fort Lauderdale, essa espécie de prequel
de Pamela Anderson (que deve certamente ter tirado sua inspiração daqueles
seios de plástico enfeitados com um sorriso Colgate).
Na minha
época, e no meu universo, não existiam Barbies. Existiam Susis. Susi era
morena, a minha ao menos era. Era bem mais encorpada e tinha menos seios. A
Susi foi, aparentemente, inspirada por uma tal de Sindy, uma inglesa que
competia com a Barbie e que foi, ela mesma, inspirada por uma tal de Tammy,
americana. A Susi tem uma história interessante, porque, com a mudança e a
modernidade dos materiais – os plásticos, vinis e outros tantos, que invadiram
nossas vidas nos prometendo felicidade eterna – as modificações das formas da
boneca foram no sentido de deixá-la mais gordinha. Parece incrível que no ano de 1975, quando a moda usava cabelos longos, hippies, corpos magros por utopias e drogas, a Estrela tenha decidido desenhar um rosto mais rechonchudo
para a nossa Barbie nacional. Mas, justamente, ela não era Barbie, era Susi. O
fato é que Susi tinha, para mim, a cara da minha mãe. Ela tinha a aprência de
mulheres normais, acessíveis, e nem por isso ela deixava de ser bonita. Não sei
o que aconteceu com a Susi depois dos anos 70 porque deixei de brincar de
boneca e quis, ao invés disso, o cabelo da Paula Toller quando o Kid Abelha
começou: curtinho e descolorido. Bom, o curtinho só fui ter coragem com mais de
20 anos e o descolorido, nunca... Minha imagem de cantora do Eurythmics ficou só
na fantasia.
Susi
Depois da
Camille, que teve seu tempo de glória, veio a Idalina, que ainda está durando,
apesar de ter sido um tanto vampirizada por mostrengas góticas. Idalina é uma
boneca “do mundo”, como se diz aqui na França. Isso quer dizer, com uma
identidade cosmopolita, um tanto quanto ela deve se achar também com essa mãe
aqui e com sua dupla nacionalidade. Cidadã do mundo, ela se apaixonou por uma
coleção onde as bonecas vêm de outro lugar: Espanha, Japão, Austrália, África
(eu sei, todos são países, menos a África que, numa só palavra, vira uma
amálgama negra vestida de roupas coloridas...). Mas, enfim, elas são
interessantes porque são imagens do outro, do outro nela. Então, como mãe (e toda mãe está espreitando para dar o bote), fiz pesar a balança para o lado da
espanhola, Idalina. Não era loira, ponto pra ela; não era magra, ponto pra ela;
tinha olhos castanhos, ponto pra ela; ela vinha com um livro dentro da caixa,
ponto pra ela; ela era latina, pontíssimo pra ela. Pronto, escolhemos Idalina e
lemos sua história de menina pré-adolescente filha de mãe solteira na Espanha,
mãe essa que devia trabalhar como cantora de flamenco para ganhar a vida. Vida
difícil, a de espanhola. Idalina trouxe com ela roupas de flamenco, leque, xale
e uma linda rosa vermelha para colocar nas madeixas.
Camille
Idalina
Até que
chegou a época de pensar no bolo de aniversário de 7 anos. Justamente naquele
ano ela havia descoberto o universo todo em roxo das Monster High com uma
amiguinha que já se interessava por aqueles esqueletos fantasiados. Fiz o bolo,
inclusive, dessa amiguinha, e o tema escolhido foi, logicamente, esse. Tentei
fazer o máximo para tirar do bolo de aniversário a cara de bolo de Halloween
para o qual o tema tende. Fiz o que pude e não saberia fazer duas vezes. E eis
que, de repente, num surto nostálgico de sua condição infantil que se vai com o
tempo, apareceu no horizonte a Galinha Pintadinha vestida de capa e espada para
lutar contra jovens anoréxicas. Gordinha como é, a tal galinha azul não teve
muita dificuldade para quebrar os ossos das góticas de salto e o bolo saiu
colorido, florido e com a galinha que estava ali para significar em cacarejos que
a infância ainda duraria um tempinho. Ufa! Mas a tal galinha tinha uma outra
carta na manga. Ela era brasileira e nenhuma das amiguinhas de minha filha
conhecia a criatura, coisa que pedia explicações e a anfitriã mirim se
esmerava a discorrer sobre sua identidade brasileira, aquela que ninguém tinha.
Monster High
Bolo Monster High da amiguinha
Os
esqueletos foram enterrados. Como puro efeito de moda que são, foram parar numa
caixa, caixa que foi parar no fundo do armário, armário que é regularmente
inundado com mais brinquedos, como pás de cal. E eu vou deixando o tempo
decompor esse fantasma, não tenho hábito de evocar almas penadas.
E então já
vem vindo a época em que as questões relativas ao tema do aniversário e,
lógico, do tão falado bolo, recomeçam. A marca atual que faz sucesso entre as
meninas da escola vem da Argentina, pela Disney, e se chama Violetta. Bom, nada
contra uma argentina que, comparada à minha querida Idalina, tem lá também seu
sangue latino. Mas, mas, mas, puro produto Disney, princesa latina, ela ocupa o
lugar de pobre coitada filha de mãe morta e de pai interessado por uma malvada
maquiada. Sim, sim, eu sei porque já assisti com ela esse negócio. Princesa de carne
e osso, dessa vez, nem rosa, nem azul, nem verde, nem amarela : violeta. Essa, cantorazinha de uma espécie de escola de estrelinhas, ainda
traz um outro ideal perigoso que, junto com a magreza da Barbie, sem falar na anorexia das Monster High, invade a
caraminhola das meninas de hoje : o ideal da fama. Fama de qualquer jeito, a
qualquer preço, querem todas ser “star” do star system que as transforma todas
em buracos negros. Ou pior, em melancias, melões, jacas, e quem sabe mais o
quê...
Então,
mamãe coragem pensa e queima os neurônios para propor outra coisa. Pensei: por
que não Paris? Tanta gente sonha com Paris e, nós, nós estamos aqui, então...
Ah, mas a realidade não constrói sonhos... Mas quem sabe o ponto não seja
justamente esse? Tentar sonhar com nossos elementos reais e que possamos assim,
com nossos sonhos, transformar a realidade de fato que nos rodeia? Não sei, mas
quem sabe minha filha venha querer a ser, no espaço de uma festa, a parisiense
estereotipada passeando com seu poodle em baixo da Tour Eiffel, ou como a
parisiense de esquerda tomando seu café em Saint Germain des Près, tão
estereotipada quanto. Não posso deixar de pensar no meu papel e nas minhas
imagens femininas nesse processo, já que, finalmente, gostaria muito mais de
ver minha filha lembrando, de algum modo, Simone de Beauvoir que Pamela-Barbie
Anderson ou Lady-Monster Gaga-High...
Bravo! Bravo! gustativa e analiticamente delicioso teu texto.
ResponderExcluirObrigada, querido!!! Adoro quando você passa por aqui! ;-)
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