Tinha
prometido ao meu amigo Cecé que iria escrever sobre os Barris um dia, como ele
escreve sobre a cidade baixa, assim, de uma forma poética, com lembranças
misturadas a sentimentos… Mas será possível que se tenha lembranças sem
sentimentos ? Ou seriam elas lembranças porque são carregadas, inundadas
deles até a raiz ? Talvez... Talvez a memória seja mesmo algo puramente
sentimental...
Esperei muito
para poder começar a escrever sobre os Barris... É como se fosse um domínio
sagrado, intocável. Em todo caso, sensível, e muito. Talvez um pouco de medo
dos sentimentos que me invadem, mas ultimamente não pude evitá-los... Um
apanhado de eventos e encontros me fizeram entrar num túnel do tempo do qual
acho que ainda não saí. Pensei então que não deveria existir melhor momento do
que esse para falar dele...
Barris…
Foi lá que fui
parar quando cheguei naquela terra que seria a minha de adoção. Pouquíssimas
vezes na minha vida assumi que era carioca… Minha mãe detesta essa minha
rejeição pelo Rio de Janeiro... Não saberia dizer a razão, talvez simplesmente
pelo fato de que era aquela a minha terra, não outra, na alma, no destino,
maktub. Salvador, com todas as suas vogais abertas e seus oxentes parecia ter
sempre corrido nas minhas veias. E de certa forma sim… Meu pai, baiano e
soteropolitano de Brotas (sempre adorei isso de ser
« soteropolitana »), sempre tinha mil histórias para contar, de
quando ainda passava bonde, de quando o centro da cidade ainda era acolhedor,
dos carnavais antigos, dos pratos feitos por minha vó Cecé, das incursões
políticas de meu avô no PTB da época, das praias da Ilha, das peraltices de
quando ele era criança lá em Brotas… Minha vó sabia fazer um ensopado de mamão
verde que ela usava como se fosse chuchu e que ela mandava os meninos pegarem,
logo ali, no quintal da casa... Da casa de Brotas... Nunca conheci essa casa,
acho que ela nem existia mais quando chegamos em Salvador, mas ela sempre viveu
no meu imaginário de criança, um casario daqueles coloniais com suas janelas
imensas e seus corredores infindos.
Eu sempre fui
ávida de histórias alheias, podia ouvi-las por horas a fio. Talvez por isso
faça hoje o que eu faço: só escuto. Um conto contado por seu dono tem sempre
uma riqueza escondida, a riqueza de revivê-lo, de voltar lá e de ver de novo
tudo aquilo, de ver e de compreender onde batia o coração.
Minha tia
Lyra, irmã de meu pai, também contava muitos deles. Diferentes, mas contava
Salvador de uma época em que tudo parecia bem mais fácil. Onde o medo não era
tão banal e tão quotidiano. Ela contava histórias de outros lugares também, e
tinha fotos... Fotos em preto e branco como aquelas das estrelas de Hollywood,
com seus vestidos acinturados, suas saias rodadas, como se tivessem saído de um
cartaz daqueles filmes antigos.
Cheguei nos Barris.
Tinha três anos, cabelos longos nunca cortados, olhos grandes cheios de
curiosidade. Minha tia sempre contava a minha chegada, era uma de suas
histórias preferidas. Ela dormia de tarde, sempre, e eu cheguei de tarde, no
meio do seu sono. Debrucei-me em sua cama e fitei-a com meus olhos grandes. Foi
amor à primeira vista. Minha tia me deu uma irmã, Martinha, que foi sempre
companheira e, muitas vezes, antagonista, como toda irmã deve ser. Dividíamos
tudo, guarda roupa e confissões.
Um apartamento
livre no andar de baixo selou meu destino nos Barris. Ali, no edifício Cardoso,
número 9, apartamento 202 da Rua Almeida Sande.
Meu quarto sempre foi o mesmo, aquele que dava para o Vale dos Barris que eu contemplava de noite quando não tinha sono. Sempre tinha um bando de loucos que jogava bola a qualquer hora do dia ou da noite numa daquelas ilhas entre avenidas transformada em campo de futebol com trave e tudo. Dizia a lenda local que até meu irmão Sergio fazia parte deles… No vale tinha também o estacionamento de São Raimundo, que sempre tinha uma atividade inusitada tipo circo, show, evento político, culto de igreja. Eu pude assim assistir todo um espetáculo de um motoqueiro que se equilibrava com sua moto na corda bamba. Aquela noite foi sensacional ! Meus pais não sabiam nada do meu interesse pelo estacionamento de São Raimundo. Também pudera, eu não adivinharia hoje em dia se fosse com minha filha, o que me faz pensar que eu devo ter perdido algo da loucura infantil que me fazia acordar de noite para, simplesmente, observar o vai e vem dos carros, que eram poucos, e que desciam daquela ladeira que vinha do Garcia…
Lembro daquele
quarto como se estivesse entrado nele ainda ontem com seus móveis 70’s laranja
choque. Minha mãe deixava também lá sua máquina de costura. Nunca soube por
qual razão ela tinha ido parar no meu quarto. Minhas cortinas eram da Disney,
com Donald e Margarida que eu conhecia de cor e salteado, faziam também parte
das minhas distrações noturnas. De manhãzinha, Donald e Margarida ainda estavam
a postos, e eu sentia aquela mão suave fazendo carinho no meu pé. Era minha mãe
que me colocava minhas botas ortopédicas antes mesmo que eu acordasse e ela
fazia tão delicadamente que quase nem me acordava. Os pés pesados de botas
caíam no chão e era aí que eu entendia que eu já estava calçada. Quando não
usava mais botas, era o cheiro do café que me acordava, aquele cheiro delicioso
de vida em casa e de carinho de mãe.
Naquela
apartamento tive um grande amor: meu cachorro Honey. Ele já vinha do Rio conosco,
mas eu o conheci ali, naquele apartamento, naquele bairro. Levava Honey pra
passear de tardinha, e aproveitava para explorar ao redor. Com ele me sentia
protegida, entrava em todas as ruas, fuçava tudo, como ele. Lembro da cor do
seu pelo, cor que deu seu nome, cor de mel. Lembro também que ele era invocado
e que adorava biscoitos cream-cracker. Num dos seus aniversários, demos um
pacote inteiro de biscoitos para ele de presente. Mas ele era meu amor, apesar
de um tanto antipático. Ele foi a primeira dor e a minha primeira saudade de
verdade. Lembro até hoje do meu robe rosa que vestia quando Seu Zé, zelador do
prédio, veio bater na porta de casa para avisar que meu cachorro estava caído
lá em baixo. Ele estava tão velhinho e já cego com seus 16 anos que não
entendeu que forçava para fora da varanda... Era somente o segundo andar, mas
foi demais pra ele assim tão velhinho, justo ele que passou a vida inteira ali,
mas um dia esqueceu tudo...
Minha escola
era também nos Barris, era uma escola de freiras. Elas eram muito enfezadas,
castradoras e, por isso mesmo, deliciosas, porque nada podia ser mais valioso
do que a irritação de uma delas. Não podíamos usar bijuteria, nem nada mais que
pudesse enfeitar o corpo. Claro, aqueles corpos cheios de desejos de toda sorte
não podiam ter voz nem espaço. O desafio era então conseguir passar pela irmã
Rocha com uma bijou qualquer sem que ela percebesse... Quando acontecia, ela
tomava, então a aposta era alta! Mas valia a pena. Uma vez ela bateu com seu
sininho na cabeça de um aluno. Dizem que sangrou, ou já era efeito do telefone
sem fio onde corria tais histórias. Decidimos então: tomaríamos aquele sininho,
e fizemos. Roubamos o danado num momento de distração e saímos correndo com ele
sacudindo e tocando dentro da mochila. Foi um êxtase místico!
Eu ia a pé pra
escola, e o meu caminho era a Ladeira do asfalto. Lá tinha a banca de Seu
Gorgani (bom, eu dizia assim…). Ali reinavam todos os meus pecados de criança.
Bala, chiclete, paçoquinha, pipoca doce (aquela do saquinho rosa), revistinha
da turma da Mônica, transfers e o ápice : as figurinhas. Podia ficar sem
comer na escola para poder comprar mais um pacotinho de umas míseras três
figurinhas, tentando, mais uma vez, conseguir aquela que faltava naquela
página, a última do álbum, aquela que ninguém tinha… Fiz tantos álbuns, sempre
tinha um novo, Sítio do Pica Pau Amarelo, Turma da Mônica, Sarah Kay...
A ladeira do
asfalto era chamada assim porque destoava do estilo do bairro. Todas as ruas
por lá eram de paralelepípedo, menos a ladeira do asfalto, que, muito mais
tarde, mas muito mesmo, vim a saber que se chamava Rua General Labatut ou
Dionisio Cerqueira, nunca lembro. Aliás, todas as ruas por ali tinham outros
nomes, os nossos nomes: rua do meio, rua dos jardins, rua da padaria...
A partir da
ladeira do asfalto, todas as ruas eram de asfalto. Era como se o mundo moderno
começasse ali, e que vivêssemos em outra época, ou talvez em outra dimensão, na
idade da pedra lascada em paralelepípedo. Aquela modernidade era ótima, muito
melhor para andar de bicicleta. Picula no paralelepípedo se chamava pé torcido
e a bicicleta ali dava tanto solavanco que só mesmo andando em cima da calçada.
Patins então, nem pensar....
Não, patins
era no prédio ao lado, o Amapá, que tinha uma área livre no térreo com piso de
cerâmica que era perfeita para nossos ensaios. Mas o zelador não gostava nada,
nada daquela idéia... Ele precisava encerar aquela cerâmica vermelha depois das
nossas tardes de patins. Também era ótimo para « 1, 2, 3 salve todos »
e « Mamãe posso ir ? ». Era o nosso refúgio, sobretudo quando
chovia.
Atrás do meu
prédio havia todo um universo paralelo que também fascinava : a roça do
lobo. Era assim que se chamava a favela que descia a encosta em direção ao Vale
dos Barris. Várias pequenas picadas entre os prédios davam acesso à favela e,
obviamente, o interesse que tínhamos por ela era inversamente proporcional à
aprovação dos nossos pais para que fôssemos explorá-la. Como ela descia até o
Vale, ela ficava bem debaixo da minha janela, o que me dava, em muitas
ocasiões, distração por muitas horas.
A roça do lobo
era bem animada com seus barracos armados, no sentido literal e figurado.
Muitas lajes onde as pessoas se escondiam dos demais da casa mas nos ofereciam,
a nós, espectadores das janelas, os mais fascinantes dos espetáculos. Muito
amor, muito ódio, muito menino empinando arraia naquelas lajes, muito cachorro
secando ao sol juntamente com as roupas, pelas quais se adivinhava o estilo e a
composição das famílias. O panorama sobre a favela era tal que, quando
infringia a lei e me aventurava naquelas picadas, sempre ficava o receio de ser
observada, de ser descoberta por algum delator, de ser pega no salto. Mas era
delicioso entrar por uma picada e descobrir sempre um novo caminho para sair em
outra. Foi na roça do lobo que tentei subir no meu primeiro e único pau de
sebo, também único lugar naquele bairro capaz de oferecer esses prazeres
facilmente condenáveis no mundo pequeno-burguês dos prédios e dos casarios
locais. Era também lá que conseguia me deliciar com bananas reais, cavacos,
sequilhos, capelinhas, geladinhos e abafabancas. Quase toda casinha, quase
toda portinha, quase toda janelinha vendia algo, fazia algo, oferecia um
serviço, um produto, um trabalho, uma macumba, era só escolher.
O tempo
passando, fui ganhando o direito de explorar os territórios proibidos, como a
tão desejada rua da biblioteca. Mas antes disso, apesar de proibida, não nos
fazíamos de rogados e íamos, pelo simples gosto de desafiar a ordem, até a
biblioteca central, onde éramos amavelmente acolhidos a cada vez, como pequenos
selvagens que se interessassem inesperadamente pela leitura. Davam-nos livros,
levavam-nos até as poltronas confortáveis das salas de leitura, e nos fitavam
com olhos de missionários. Não entendiam que estávamos ali somente para
desafiar nossas respectivas figuras da autoridade. Muitas vezes conseguimos
entrar escondidos no cinema e vimos filmes, ou melhor, pedaços deles, porque o
interessante não eram os filmes em si, era o fato de estarmos lá dentro, só
isso. Até hoje, pagar nesse cinema me parece estranho, ele ainda tem um quê
familiar de quintal de casa.
Nós éramos um
bocado, uma renca de meninos correndo, subindo em árvores, correndo, jogando
bola, correndo, pulando elástico, correndo, pulando macaquinho, correndo,
pulando corda, correndo, correndo, correndo... Eu, Marta, Gabriela, Angélica,
Andréa, Bia, Renata, Roberta, Márcia Piu-liu, Cida, Regina, Lúcia, Van-van, e
todos os outros de quem não consigo me lembrar o nome de jeito nenhum... Na
hora do almoço, do banho, do jantar, alguém gritava da janela: “ta na hora!”,
“volta!”, “sobe!” e aquela horda de selvagens se dissipava em alguns segundos,
claro, depois da dezena de repetições dos clássicos “já vou!”, “tô indo!”,
“peraí!”, “agora não!”... Era tudo muito simples, era tudo muito bom.
A simplicidade
vivida ali tornava tudo mais verdadeiro, era ou não era, valia ou não valia,
amava ou não amava. Não usávamos marcas, não sabíamos nem o que era, não
estávamos nem de longe nesse faz de conta. Estávamos em outro, no faz de conta
da imaginação correndo solta, sem televisão, sem videogame, na rua, descalços
brincando, brigando, falando e fazendo bobagem…
As ambições de
cada um foram deixando tudo aquilo pra trás, como algo a ser ultrapassado, como
uma espécie de mundo interiorano a ser superado para ir mais longe. Mas longe
onde ? Longe pra quê ? E finalmente, depois de tantas andanças,
tantos encontros e desencontros, tantas despedidas e reencontros, estou sempre
ali, com todos eles, brincando descalços uns com os outros naquelas ruas de
paralelepípedo entre a rua do asfalto e a dos jardins.
Deixei os
Barris com 15 anos, já com outros desejos, e fui morar na praia, mas essa é uma
outra história…
Uma pequena
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